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A descoberta de si mesmo

Valorizar aquilo que nos torna únicas, encorajando a escolha e, claro, o empoderamento feminino é algo que, para mim, sempre foi imprescindível. E é justamente para falar sobre estes tópicos que conversamos com Gabriel Lodi

Não, você não entendeu mal! Por mais estranho que pareça, entrevistei um homem sobre estes tópicos e, durante a leitura, você vai entender a razão disto.

 

VIOLETA CUP – ENTREVISTA GABRIEL LODI

Violeta: Gabriel, como foi para você se identificar um homem dentro de um corpo feminino?

Gabriel: Você não se descobre transgênero. Você sabe que é. Quando criança eu achava que todo mundo estava errado, que uma hora meu corpo iria finalmente mudar. Me lembro de colocar meias dentro das calças para fazer volume, ou de colocar boné e pensar “é assim que eu deveria ser. É assim que eu deveria parecer”. Comigo essa identificação com o sexo oposto sempre ocorreu de forma natural. Ou seja, não era consciente. Rolava um desejo de ser daquela forma, tanto no comportamento quanto na aparência física. Esta sensação, combinada com a de não pertencer, nos transforma em pessoas muito observadoras e, a partir daí, começamos a perceber que algo simplesmente não bate e então passamos a questionar certas coisas. No meu caso, ao notar comportamentos como este, meus pais passaram (quase instintivamente) a repreender os pequenos sinais que eu dava, a fim de fazer com que eu me encaixasse ao modelo que eles imaginavam que seria o melhor para mim, ou seja o papel da menina.

Violeta: E como você escolheu o nome Gabriel?

Gabriel: Na real, sempre fiquei feliz ao ser tratado com palavras masculinas. Sempre gostei de ser “ele”. Foi então que, aos 24 anos, finalmente entendi que era transgênero e, acredite, quando essa identificação acontece, não existe mais dúvidas. Você sente e pronto. No dia em que isso ficou claro pra mim, passei a buscar um nome. Quando, olhando para o espelho, eu disse Gabriel em voz alta, percebi que era isso. Aquele era o nome que eu estava escolhendo para mim, no dia do meu novo nascimento.

Infelizmente, apesar de alguns avanços relacionados à adoção do nome social no Brasil, existe um caminho longo com relação à mudança do nome nos documentos. Hoje, você só pode realizar este tipo de alteração depois dos tratamentos hormonais, das cirurgias e por aí vai. E esta é apenas uma das barreiras. Cada juiz pode interpretar sua solicitação de uma forma. Hoje, se o seu processo cair nas mãos de um juiz que não concorda com este tipo de mudança, mesmo que seja por puro preconceito, não importa o quão importante esta mudança seja para a SUA vida, você terá que lidar com o não.

Mas mesmo quando isso não acontece, não quer dizer que este é um processo simples. Eu, por exemplo, além de iniciar uma ação para a mudança de nome, fazendo uso de direito garantido pela constituição, tive que anexar uma série de documentos que comprovassem que na vida pessoal, nas redes sociais e mesmo no trabalho, eu era o Gabriel.

 

Violeta: Para a mudança de gênero na documentação o processo também é assim?

Gabriel: É um outro processo, mas não quer dizer que é menos complicado. Você precisa comprovar que realizou as cirurgias e uma série de outras mudanças que, infelizmente, não são tão acessíveis para a população em geral. No meu caso, contei com a sorte de, por um equívoco do cartório, conseguir a mudança de gênero quando solicitei a mudança do nome.

De qualquer forma, e apesar do constrangimento, contar com os documentos é algo fundamental.  Não tê-los é o mesmo que não ter acesso a saúde, emprego, e outras coisas.

 

Violeta: Você realiza algum tipo de tratamento hormonal para se reconhecer e se sentir à vontade consigo mesmo?

Gabriel: Sim. Já são sete anos de terapia hormonal e é algo que terei de fazer para o resto da vida. E, acredite, a mudança comportamental, causada pela alteração hormonal é absurda. E digo isso com a propriedade de alguém que já esteve dos dois lados. Não seria louco de dizer uma bobagem como “toda mulher é histérica e louca”, mas os hormônios femininos realmente fazem com que as emoções fiquem sempre mais à flor da pele. Agora sou uma pessoa bem diferente. A testosterona é um hormônio forte pra caramba e que alterou meu corpo por completo. Além do aumento dos pelos, da barba, e do aumento na musculatura, rolou uma redistribuição de gordura corporal e um atrofiamento dos órgãos reprodutores femininos, que param de produzir hormônios sexuais. Com isso, a menstruação parou e começou a regredir para um estágio parecido com o da pré-adolescência. Mas tudo isso, é bom reforçar, tem que ser acompanhado bem de perto por um médico. Além do monitoramento e da aplicação do hormônio de forma adequada, ele vai ajudar no controle do colesterol, da pressão, da massa óssea e de outros tantos fatores fundamentais para garantir que está tudo em ordem. Realizar a hormonização por conta própria é um risco absurdo para a saúde.

 

Violeta: Mas existem centros de referência em que se possa fazer este tipo de acompanhamento?

Gabriel: No Hospital das Clínicas, assim como no CRT (Centro de Referência e Tratamento) DST/AIDS – Ambulatório de atendimento a Transexuais e Travestis, aqui de São Paulo é possível obter atendimento gratuito, em ambulatórios que realizam todo o acompanhamento desde a hormonização, passando por exames, cirurgias e até grupos de apoio. Infelizmente, hoje apenas quatro hospitais realizam este tipo de atendimento pelo Sistema Único de Saúde em todo o Brasil. Por isso, as filas são imensas e a espera para a realização de determinados procedimentos chega a ser de mais de uma década. Eu, por exemplo, acabo de ingressar no grupo terapêutico em que, pelos próximos dois anos, passarei por um acompanhamento psicológico para dizer se estou apto para o procedimento. Ao todo, já estou na fila há quatro anos e acredito que precisarei de pelo menos mais oito para finalmente realizar a readequação genital.

Não posso dizer que a espera não é angustiante. No meu caso, que já pude realizar a mastectomia, posso dizer que a situação é um pouco menos pesarosa, mas ainda assim não é confortável.

 

Violeta: Que conselho você daria para uma pessoa que está passando por mudanças na vida?
Gabriel: Procure ajuda! Sabemos que a solidão é algo comum na vida de toda pessoa que não se encaixa em um padrão, seja ele de beleza, social e claro, de gênero. Este é o nosso mecanismo de defesa, mas chega um momento em que necessitamos de ajuda. Precisamos de apoio profissional e orientação para entender que não precisamos fazer nada sozinhos e nem de forma precipitada. Precisamos saber também que é possível contar com uma rede de apoio composta por pessoas que se identifiquem com a mesma questão. Apesar de não gostar de rótulos e caixinhas, acho que um grupo composto por pessoas que vivem a mesma situação permite a identificação e o suporte. Não se afastar da família também é importante. É claro que a tarefa não é das mais fáceis, mas o tempo é a melhor preparação para lidar com “novidades” deste tamanho.

Violeta: Para você, qual foi a etapa mais difícil?

Gabriel: Acho que a pessoa que está passando por isso, sabe o que tem que fazer. Ela sabe que tem que readequar o corpo e acho que esta é a parte mais tranquila do processo. Acredito que o grande desafio é ter que se afirmar frente a uma sociedade que não te aceita.  E, por mais que sejamos independentes, vivemos e necessitamos da sociedade em que estamos inseridos. Precisamos de emprego, dos serviços básicos, de tudo. Hoje, diferentemente da comunidade gay, que possui a bandeira do orgulho, as pessoas trans ainda estão brigando pela visibilidade. Ou seja, queremos mostrar que existimos e que estamos aqui. Por isso é importante abrir esse espaço de discussão sobre o assunto. Existimos, temos nossas capacidades, nossos talentos, precisamos mostrar que ser trans é só uma das coisas que nos definem.

Violeta: Em uma entrevista ao ator Dan Stulbach, cujo personagem na novela “A Força do querer” é pai de uma pessoa transgênero, você fala sobre os impactos da mudança em sua vida familiar. Como isso se deu?

Gabriel: Acredito que existe um período de entendimento para o qual ninguém está 100% preparado. Contei para os meus pais há sete anos. Imagine o impacto que um fato como este pode causar em pessoas de outra geração, que vivem em uma cidade pequena e tiveram outro tipo de criação. Foi um choque gigantesco, que gera muitas dúvidas e questões. No início, por exemplo, minha mãe fazia questão de me chamar pelo gênero feminino. Percebi que ela reagiu como alguém em luto, passando por todas as fases. Para ela, foi como a despedida de uma filha que ela nunca mais poderia ver. É conflituoso e complexo. Mesmo sabendo que o amor não muda, o corpo, o cheiro, o toque e a voz são outros. Isso, para os pais, é muito difícil.
Há cerca de um ano – ou seja, seis anos depois daquela conversa – voltamos a ficar bem. Claro que ainda temos de lidar com uma carga emocional muito grande, que envolve a culpa e uma série de outras questões que só poderão ser resolvidas com o tempo.

Violeta: Nascer em um corpo feminino em uma sociedade machista já é difícil. Podemos dizer que tornar-se um homem transgênero nesta mesma sociedade é ainda mais difícil?

Gabriel: Sinceramente (e infelizmente), tenho de confessar que me sinto “privilegiado” por ser um homem trans. Para uma mulher trans tudo é muito mais difícil. Hoje, por exemplo, consigo ter um bom emprego. Não podemos dizer o mesmo para boa parte das mulheres transgênero que, aqui no Brasil, acabam se tornando prostitutas por conta da ausência de oportunidades. 90% das mulheres transexuais ou travestis trabalham no mercado informal da prostituição.
E isso tudo, claro, é resultado do machismo. Acho que a maior lição de um cenário horrível como este é a de que precisamos desconstruir urgentemente o conceito do que é “ser homem” e isso tem que partir, inclusive, de mulheres que criam homens. O machismo precisa ser desconstruído. Só com a quebra de padrões e limitações de gênero e o fim da opressão feminina conseguiremos evoluir como sociedade. Espero que a nova geração deixe para trás ideias obsoletas como “coisas de homem” e “coisas de mulher”, afinal ninguém é menos e nem mais que o outro, independentemente do gênero.

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